Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)
Reitoria tem se manifestado em contrariedade à proposta do Ministério da Educação
Mudar o modelo vigente é o desafio e a aposta do governo federal ao apresentar o Future-se - programa do Ministério da Educação (MEC) que busca, entre outros, rever a forma de financiamento das universidades públicas - que tem tirado o sono e levado apreensão ao meio acadêmico. O Diário conversou com especialistas, professores e servidores na tentativa de jogar luz ao tema que tem sido tratado com reserva pela gestão Jair Bolsonaro (PSL) e que, até o momento, tem diluído a conta-gotas as informações sobre o programa.
A largada e, ao que tudo indica, o desfecho de 2019 reservam um saldo preocupante à situação das instituições de Ensino Superior. Neste ano, o MEC cortou mais de 30% dos orçamentos das universidades. Ou seja, há menos dinheiro para investimento - em obras, laboratórios, pesquisas - e para o custeio - que é o dia a dia (contas de água, luz, telefone e demandas com terceirizados).
A UFSM tem retido R$ 74 milhões - sendo R$ 46 milhões (para custeio) e mais R$ 28 milhões (para obras) -, o que faz com que o reitor Paulo Burmann já tenha dito que setembro é o mês limite. Após isso, faltará dinheiro para manter a instituição em dia.
Ao se valer da insuficiência financeira, o MEC viu um vácuo e jogou sua fichas ao apresentar o Future-se, no final de julho. Entre tantos pontos, um deles, em especial, se sobressai: o que leva para dentro das universidades as chamadas Organizações Sociais (OS), que são empresas privadas sem fins-lucrativos que recebem da União para prestar serviços públicos. Esse tópico é o mais espinhoso e conflitante para os reitores, que entoam, em uníssono, perda de autonomia.
SEM MEIO-TERMO
O ministro da Educação, Abraham Weintraub, rechaçou que o papel das OS em nada irá suprimir ou se sobrepor ao dos reitores. Ele tem dito que é chegado o momento de as universidades viabilizarem e estreitarem parcerias com a iniciativa privada. Além disso, o ministro assevera que não haverá meio-termo em uma eventual adesão ao programa. Weintraub já desenhou o cenário aos reitores: "ou as universidades adotam o novo modelo na integralidade ou seguem como estão hoje".
Procurada pela reportagem, que indagou sobre uma possível perda de autonomia frente às organizações sociais, o MEC se manifestou por e-mail, informando que "o programa não propõe nenhuma alteração Constitucional (...) e que a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial continua mantida".
O ministério reforçou que "as instituições de ensino federais continuarão públicas e que isso está inalterado" e que o objetivo do Future-se "é uma modernização das universidades ao criar condições para que elas possam se concentrar em suas finalidades: ensino, pesquisa e extensão". A principal mudança, afirma o MEC, é "que, além dos recursos do orçamento federal, as instituições poderão captar recursos de fontes privadas" e que elas "não deixarão de ter um orçamento público".
Cientistas políticos divergem quanto à proposta do MEC
Ainda que não se tenham muitas informações mais detalhadas do Future-se _ até por estar ainda em construção _, a cientista política Céli Pinto e professora do departamento de História da UFRGS, avalia que o programa "acaba com todos os avanços das últimas três décadas junto ao Ensino Superior brasileiro":
- Tivemos, nos últimos anos, uma ampliação da oferta de vagas nas universidades públicas, de forma democrática e plural. O que, agora, está sendo desfeito. O pouco que se sabe do programa dá para dizer que é um projeto de privatização e de elitização. Sem dizer que se tira dos reitores a autonomia com o papel das OS.
Ainda sobre as organizações sociais, Céli reitera que isso representará "a terceirização de professores" e trará "um desmanche e um sucateamento" das universidades. A cientista política afirma que o Brasil, se quiser ter êxito no Ensino Superior, deve seguir os exemplos bem-sucedidos da Alemanha, França e Itália, que têm modelos gratuitos de ensino. Ela cita que a graduação paga nos EUA virou um problema social aos formandos, que têm contraído empréstimos.
- Tanto agora com esse Future-se quanto às demais medidas apresentadas pelo governo, desde janeiro, na área da educação, fica claro que (essa área) é a última preocupação do governo.
O cientista político Paulo Kramer, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e que colaborou com o programa de governo de Bolsonaro, entende que o Future-se representará "mais dinheiro para ampliar a modernização de equipamentos e de instalações":
- É claro que não pode se iludir ao achar que essas fontes privadas irão suprir todas as necessidades das universidades. Veja a realidade hoje: 90% dos orçamentos das universidade é para pagar a folha, e sobra pouco para investir. A autonomia financeira e gerencial das universidades serão fortalecidas.
Kramer lembra que no Brasil o raciocínio "é o inverso do americano". Lá, cita ele, "o americano médio passa a vida guardando dinheiro para o filho estudar numa universidade". O professor pontua que "até na China comunista, a universidade é paga". Ele ainda citou o engessamento das universidades brasileiras:
- As universidades brasileiras que têm ex-alunos bem-sucedidos, e que quiserem retribuir criando fundos ou linhas de financiamento, não conseguirão, tamanha a dificuldade. Já nos EUA, a lógica é inversa.
Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)
A exemplo do Hospital Universitário de Santa Maria, ainda não há definição se os hospitais universitários seriam absorvidos pelo programa
Pontos do programa já são contemplados pela UFSM, diz reitoria
Para o reitor Paulo Burmann a grande interrogação acerca do Future-se está concentrada junto às organizações sociais. Os questionamentos que pairam se dão na seguinte linha: qual será o papel das OS? Elas irão interferir na gestão e na autonomia da universidade? O ensino, a pesquisa e a extensão serão impactadas?
- Há, aí, um risco aparente junto às organizações sociais. A autonomia da universidade será ferida? Não precisamos de nenhum tutor para nos dizer o que devemos fazer. A verdade é que não precisamos de um Future-se para resolver a situação da universidade. Precisamos, sim, de investimentos públicos em educação, ciência e tecnologia para garantirmos a soberania nacional. Está, aqui, o mais grave ataque à autonomia da universidade.
Ainda dentro do Future-se, há uma proposta para que as organizações sociais possam contratar professores sem concurso público. Outro aceno do MEC é para a criação de um fundo da ordem de R$ 100 bilhões, que seria dividido entre as universidades que aderirem ao programa. Uma espécie de ranking e de sistema de cotas seria utilizado para acessar os valores. O montante, de acordo com o ministro Abraham Weintraub, observaria um fundo formado por imóveis (das próprias universidades), recursos privados e, inclusive, verba da Lei Rouanet. O Future-se, como está a proposta hoje, altera 17 leis em vigor, sendo as mais conhecidas: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e a Lei Rouanet.
O vice-reitor Luciano Schuch é categórico ao dizer que algumas propostas do Future-se - como empreendedorismo, pesquisa/inovação e internacionalização - já são cumpridas pela UFSM:
- Apenas com a fundação (em referência à Fatec), a UFSM movimentou, no ano passado, R$ 98 milhões com projetos. Junto à iniciativa privada, foram captados R$ 37 milhões. Por que, então, implementar uma OS se a gente já busca recursos externos? Sem dizer que temos 30 empresas incubadas dentro da universidade gerando emprego e renda.
HOSPITAIS
Outra situação também não está respondida trata da possibilidade de hospitais universitários serem tragados pelo Future-se. Na audiência pública da UFSM, na última quinta-feira, falou-se do receio de que o Hospital Universitário de Santa Maria (Husm), por exemplo, passe a atender pacientes com planos privados. A reportagem questionou a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) - que administra o Husm - se isso poderia ocorrer, e foi dito apenas que "os artigos do programa ainda estão em discussão".
Sindicatos repudiam iniciativa
Desde a sua apresentação, o programa Future-se tem provocado uma série de debates e assembleias por parte dos sindicatos que representam os professores e os servidores técnicos da universidade. Tanto a Seção Sindical dos Docentes da UFSM (Sedufsm) quanto a Associação dos Servidores (Assusfsm) consideram a proposta do MEC um ataque ao Ensino Superior público.
A assessoria jurídica da Sedufsm apresentou uma análise do programa e considera que o "panorama suscita questionamentos no tocante ao futuro do financiamento das instituições, em especial no que diz respeito ao repasse de recursos públicos". O parecer também aponta "possíveis violações constitucionais decorrentes do programa", principalmente no que se refere à autonomia universitária. A Assufsm também é contrária à proposta e "defende a universidade pública, gratuita, democrática e referenciada socialmente".